quarta-feira, 7 de setembro de 2016

barcos maiores

existe uma teoria – e aqui entra uns parênteses, expressados através de uns travessões, pra dizer que teoria muito provavelmente é a palavra equivocada pra designar isso – na qual a tragédia é perfeita e tranquila. em antígona, jean anouilh diz: “tragedy is restful; and the reason is that hope, that foul, deceitful thing, has no part in it. there isn’t any hope. you’re trapped. the whole sky has fallen upon you, and all you can do is shout”. e, embora possa ser considerado terapêutico gritar num travesseiro, isso só deixa você com uma garganta doída e um travesseiro amaldiçoado, que ecoa sua própria voz quando você se deita.

mas gritar pode vir de várias formas, e uma maneira de gritar pro vazio neste século é escrever um post num blog. eu até iria ao topo de uma montanha e gritaria para as árvores e a terra, mas tenho certeza que já alcançaria o pico esbaforida. (já atingi muitos cumes exausta.) e há algo de imutável na internet, como na natureza: eu vou gritar mas com a certeza de que as raízes permanecerão tão fincadas e as pedras tão secas e erosivas quanto o buzzfeed lançará um post nostálgico dos anos noventa e o facebook irá sugerir que eu adicione pessoas que eu evito na rua. 

e é essa constância, talvez, que sustenta a tragédia. anne carson escreveu, justamente numa adaptação de antígona: “how is a greek chorus like a lawyer? / they’re both in the business of searching for a precedent / finding an analogy / […] so as to be able to say / that terrible thing we’re witnessing now is / not unique you know it happened before / or something more like it / we’re not at loss how to think about this / we’re not without guidance / there is a pattern / we can find an historically parallel case / and file it away under / antigone burned alive friday afternoon”. que de certa forma pode ser interpretado como o agora-nesta-época-primeiramente-fora-temer banal de kafka “a alemanha declarou guerra à rússia – à tarde, natação”. suponho que sempre haverá uma alemanha, uma rússia, e a natação sempre será tão inadiável quanto trivial.

gritar, mas sem um receptor, ou para todos os receptores do mundo – o que é o mesmo. contenha-se. confissões só lhe parecem importantes pois é você a fazê-las; um segredo só faz bem a quem o conta. o único presente do destinatário vai ser o peso enorme das suas palavras, e nada vai mudar pois nada nunca muda. não é um brinde, é o mármore nas costas de sísifo. e, como guilderstern em rosencrantz and guilderstern are dead, de tom stoppard, você pode perguntar “who decides?”, mas a resposta é apenas “decides? it is written. we’re tragedians, you see. we follow directions, there is no choice involved. […] (calling.) positions!".

em suas posições!

+ me incomoda ter escrito esse texto tão presunçosamente repleto de citações inteligentes de peças de teatro e autores renomados – embora eu goste muito delas e tenha a vaidade de achar que todos devem lê-las pois eu gosto muito delas. preciso me redimir com algo tão banal quanto natação e tão enganador como a esperança. preciso dizer que talvez não se careça da tragédia. preciso dizer que talvez não esteja escrito, só porque édipo se enroscou com a própria mãe enquanto fazia de tudo pra evitar se enroscar com a própria mãe, que você inevitavelmente vai morder a sua própria cauda, como um ouroboros que veste abercrombie & fitch. preciso dizer que, na verdade, muitas vezes eu me sinto como quint e talvez sejamos todos quint. talvez apenas necessitemos de barcos maiores. tubarão (1975), steven spielberg. 

sábado, 28 de maio de 2016

eu sou boazinha. e quantas de nós não somos boazinhas?

por uma série de fatores - minha timidez e o fato de eu não gostar de confrontos certamente influenciam isso -, eu sempre fui muito calada. já confundi isso muitas vezes com "educação" quando era, nem que seja um pouco e às vezes era muito, "submissão".

muitas vezes ouvi barbáries e dei um sorrisinho. mas é o que nos ensinam, né? "é só uma piada", "ele não quis dizer isso", "não leve tudo tão a sério". e eu ouvia barbáries que me incomodavam tanto que eu precisava me mover, como se o incômodo fosse físico, como se o que me fizesse sentir daquele jeito era minha posição. mas eu sorria.

um sorrisinho quando o colega dizia "mulher pra casar". um sorrisinho quando um familiar diz "mas vestida desse jeito...". um sorrisinho quando o amigo diz "típico de mulher". um sorrisinho quando alguém usa "louca" pra se referir a sua presidenta.

é um reflexo. não quero sorrir, a coisa que menos quero é sorrir. na minha cabeça, invento discussões, xingo homens otários, imagino um mundo em que eu não tenha que submeter meus ouvidos a estupidez monumental de alguns. mas a educação-submissão me impede. qualquer outra reação que não seja o sorrisinho me dá uma dose cavalar de adrenalina.

depois do sorrisinho, recuperação de forças. respirar profundamente, tomar uma água, se distanciar, mudar bruscamente de assunto. mas o sorrisinho é um resquício que, depois de tantas leituras feministas, tanto absurdo na vida, tanta barbárie escancarada, eu odeio. odeio não poder controlar algo que reflete o extremo oposto do que eu sinto.

meu eu ideal não sorriria. mas eu ainda não sou meu eu ideal, nem de longe. mas digo: pouco a pouco, esse sorrisinho tá indo embora. eu já ouço menos e falo mais. já sou menos interrompida e interrompo mais.

mas o que eu queria dizer é: eu não vou mais sorrir. um dia, a partir de todo meu esforço e de toda essa raiva que existe, dentro de mim, dessa sociedade que naturaliza o estupro e todas as violências contra a mulher, eu vou parar de sorrir.

um dia, essas discussões e xingamentos vão sair da minha cabeça e vão bater vocês, homens, na cara.

e eu finalmente, finalmente, vou parar de me sentir boazinha.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

mães, 1

quando eu tinha 14 anos, tentei convencer minha mãe a fazer um segundo furo na orelha. o argumento que eu achei que seria mais convincente morreu antes mesmo de chorar. à minha mãe, irredutível, expliquei: 

“mas até [a menina pudica que não fala palavrão, estuda sempre, nunca havia ficado de recuperação e não gosta de falar sobre, ou até mesmo a palavra, sexo] tem, e a mãe dela não deixa ela fazer nada!”. não que eu tenha feito esse resumão da minha amiga, mas minha mãe sabia a “menina boazinha” que ela era. 

ainda assim, ela olhou para mim como quem olha um oponente de debate inferior — um olhar de quem ganhou, mas meio decepcionado pela competição fraca. com razão, claro. como se ser estudiosa ou falar palavrão tivesse qualquer coisa a  ver com furar a orelha. 

não tem, não tinha e talvez nem tivesse pra mim na época, mas eu sempre construí meus argumentos não pelo o que eu pensava, mas pelo o que eu pensava que os outros pensavam. não me importava que eu não acreditasse no raciocínio que eu estava usando, o objetivo era convencer o outro. mas pelo visto eu não só errava no argumento como errava no que podiam ser as concepções dos outros.


eu consegui o segundo furo, afinal. não através da minha inteligência, do raciocínio lógico, de fortes opiniões. foi pelo cansaço mesmo, exaustivamente implorando e irritando minha mãe cada vez mais. não é o jeito mais elegante de alcançar uma meta, é só um jeito de alcançar a meta — que funciona. e, de vez em quando, é só isso que importa.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

meu pai

eu sou como as pessoas que deixam o celular na gaveta de meias, a carteira na mesa da cozinha do trabalho (na sexta-feira antes de um feriadão) e metade do par de brincos de prata presente de avó no porta-lápis (eu sempre tenho a plena certeza de que eu vou encontrar a outra metade, fazendo esforço ou não; as minhas coisas têm uma tendência a voltar pra mim, o que, sendo uma pessoa desligada, eu acho bem legal). eu sou como essas pessoas porque eu sou essa pessoa. no último mês, fiz todas essas coisas.

“você é igualzinha a seu pai”, minha mãe me diz pela enésima vez. o motivo agora foi minha carteira de habilitação. em um prédio burocrático mono(te)(cro)mático qualquer, me pediram um documento com foto e, ao receberem minha habilitação, disseram que não podiam aceitar porque fazia seis meses que ela tava vencida. de uma pessoa que dirige rigorosamente todos os dias. 

meu pai também é assim. muitas vezes o telefone de casa tocava e era ele perguntando se: esqueci o telefone aí?, esqueci um cartão na mesa?, deixei minha agenda na sala?, veja se tem um caderno na minha cama. como eu, ele também deixou a carteira de habilitação dele vencer.

mas eu acho que não sou assim tão parecida com ele. porque eu só passei seis meses pra perceber que minha carteira tinha vencido. meu pai passou cinco anos.